Coriolanus Snow não é uma vítima da sociedade. Suas ações, provaram inúmeras vezes de que ele é capaz de amar, de sentir empatia, de se importar com outros. Mas a verdade é que a única coisa que ele sempre amou foi o poder que pôde conquistar para si. Como ele e sua família falam, “Snow é como a neve: sempre cai por cima de tudo.“
O poder realmente corrompe quando se já é corrompido?
Desde que fora anunciado, havia-se muita expectativa sobre o que seria um novo livro no universo de JOGOS VORAZES. Por se passar 65 anos antes das tragédias de Katniss Everdeen – no famoso período conhecido como OS DIAS ESCUROS– demonstrou muito potencial por mostrar as origens desse universo sombrio (e perturbadoramente próximo do nosso). Foi com grande surpresa, porém, que o livro deu foco à juventude do futuro presidente Snow, figura vilanesca, porém complexa, da trilogia original. Houve um receio de que a autora usaria a história para justificar as ações que ele tomou. O que no nosso contexto atual, seria uma mensagem danosa e perigosa. A verdade é que, embora o livro tome vários caminhos duvidosos, é admirável da autora mostrar que às vezes, o mal existe desde a raiz.
A história é relativamente simples, embora possua caminhos complexos. Dez anos depois do fim da guerra civil de Panem, a Capital e os Distritos ainda se recuperam da cisão entre o governo e a população. A nação que um dia fora os Estados Unidos da América nunca se encontrou tão cheia de ódio, medo e desesperança – intensificada pela imposição dos Jogos Vorazes, onde crianças dos Distritos são escolhidas como tributos para lutar até a morte em uma arena, como punição pela rebelião. No ano da décima edição dos Jogos, uma mentoria para os tributos é estabelecida, e o jovem Snow, estudante exemplar da Academia da Capital, fica encarregado da tributo do Distrito 12, uma jovem excêntrica chamada Lucy Gray Baird. E esse encontro mudará não apenas a percepção pública da população sobre ver crianças matando umas as outras, mas também aumentará a sede de poder em Coriolanus.
A crítica que Suzanne Collins teceu na trilogia original nunca esteve presente de forma tão clara quanto nesta narrativa, o que pode causar estranhamento. Aqui, não apenas ela muda a narrativa para a terceira pessoa, como oferece uma perspectiva bem mais reflexiva e sombria sobre a sociedade como um todo. Discussões sobre a natureza humana, contratos sociais e sobre a capacidade de sermos violentos ou gentis se misturam com sequências horripilantes, saídas diretamente de histórias de terror. Os eventos fora da arena dos Jogos são muito mais perturbadores do que os que ocorrem nela, o que se reflete ainda mais em seu protagonista, Coriolanus Snow.
Perversidade atemporal
Snow, aqui, é um jovem com grande peso nos ombros. Ele não deseja apenas manter o bom nome da família limpo, mas também conquistar aquilo que ele julga merecer. O que sente por Lucy, ainda que intenso, jamais faz com que ele desista de seus objetivos. A guerra marcou sua vida e sua opinião, e é nessa história que vamos o quão longe ele é capaz de chegar para se proteger. Desde o começo até o final, a autora jamais trai nossa confiança o colocando como uma figura digna de pena ou facilmente manipulável. Suas emoções e relacionamentos mostram, claro, que existe algo bom, direcionado a aqueles quem ama. Ainda assim, ele é quem sempre foi – um homem inteligente, sagaz, e implacável. Ele acredita no sistema e acredita estar no lado correto da história. E por ser tão humano, se torna ainda mais monstruoso.
Infelizmente, a narrativa não possui foco o bastante para manter a mesma complexidade ao todo que dá ao seu futuro vilão. Suzanne Collins ainda sabe como manter o leitor ligado, colocando vários ganchos no final de quase todo capítulo, mas é óbvio que a quantidade alta de personagens e subtramas incha algo que deveria ser bem mais enxuto. Personagens com potencial acabam sendo deixados de lado, e personagens irritantes ganham um destaque desnecessário, ainda que possuam propósito. Essa gordura narrativa faz com que a mensagem sobre a natureza da opressão acabe sendo diluída, tendo como maior exemplo o final, que embora bem construído, ainda é anticlimático. As cenas gráficas de violência contrastando com o humor sombrio nem sempre funcionam, mas o uso da trilha sonora interna, com referências perspicazes para os que já são fãs da série, ainda garantem interesse mesmo nas partes mais desgastadas da trama.
No geral, A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES ainda é um livro interessantíssimo, principalmente por ser algo bem diferente na moda atual de humanizar personagens malignos. Ainda que ele não cumpra todo seu potencial, ainda é um alerta pungente sobre o perigo dos ideais totalitários, e da busca constante pelo poder absoluto. Para quem é fã e deseja uma expansão da mitologia, é uma leitura obrigatória.