“Por aqui e não por ali! ” “Isso pode, isso não! ” “Deixa disso menino, não é pra você! ” “Vai brincar aqui com as outras meninas vai…”
Desde cedo somos educados (ou melhor, doutrinados?) a ser ou não ser de certa forma ou se comportar de determinado jeito por essa ou aquela convenção.
Em uma Inglaterra de Margaret Thatcher em meio à crise e greves de mineiradores um jovem menino de 11 anos descobre no ballet uma forma autêntica e verdadeira de se expressar e se descobrir enquanto sujeito. Mas, afinal de que direitos ou privações estamos falando quando uma criança quer dançar? E o que ela pode nos ensinar sobre o direito à diferença?
Precisamos falar sobre Billy Elliot
Quase ou acaso um menino sai da aula de boxe na qual fora obrigado pelo pai a frequentar. Com a missão de devolver a chave da academia onde treinava à professora de ballet, que fazia uso de o espaço após o ringue de luta sair de cena, Billy vislumbra meia dúzia de meninas saltitando e dando piruetas de forma imprecisa e desastrados. Coordenando os movimentos, uma senhora de idade − aos berros − ordenava passos e criticava as performances realizadas pelas alunas.
Billy é provocado a dançar junto às meninas e, perturbado, com o convite refuta e foge. Onde já se viu um homem fazer ballet?! Afinal o que diriam seus amigos…? O que diria seu pai? Sua falecida mãe: o que diria?
Nesse contexto, é que se iniciam as privações. O não direito a participar e fazer ao que tem vontade, uma criança – aquela normalmente usada como sinônimo de liberdade – a ela não foi garantido a liberdade de ser livre para parafrasear um livro de Hannah Arendt.
Neste fim de semana, após assistir ao filme Billy Elliot (Stephen Daldry, 2000) e na sequência sua adaptação musical no Teatro Alfa em São Paulo, me peguei refletindo sobre o que essa história me ensinou. A primeira coisa que concluí foi a questão geracional e do passar do tempo. No contexto da história (1984-1985) podemos até pensar que o conservadorismo era mais “aceitável”, mas dada alguns contextos atuais me questiono o quanto de fato avançamos. Outro dia tive contato com uma pesquisa do Fórum Econômico Mundial que relata que a equidade de gênero (homem-mulher) no mercado de trabalho levará 200 anos (sim, dois séculos) para ser alcançada.
Depois passei me questionar quantos Billys não deixaram de existir ou até que ponto eu mesmo não deixei, em algum momento, de ser um Billy. O estímulo ao esporte em detrimento à arte e cultura. Claro, não diminuindo o valor do esporte e o quanto ele também pode educar e ser transgressor aos códigos estabelecidos. Os papéis de gênero e a clássica divisão de coisas de menina vs coisas de menino permeiam até hoje nossas escolhas. Desde a desvalorização de determinadas áreas (como a educação por ser “feminina”) até os preconceitos e desafios de quem rompe com esse código.
A inclusão e o direito à diferença
Billy me fez pensar muito sobre a ideia de sociedade e escola inclusiva. Num mundo onde não é permitido um menino dançar ballet, como podemos imaginar (e permitir) que uma mulher cega seja mãe ou uma pessoa com deficiência física um atleta olímpico? É quase utópico. E seria, não fosse as décadas de luta das pessoas com deficiência.
A dança de Billy, com seus sapateados e rodopios me permitiu vislumbrar o quanto ainda precisamos avançar em um projeto de educação que inclua, verdadeiramente de forma que todos possam ser e construir esse ser individual e coletivo, de forma autêntica – tal qual o desejo da mãe de Billy registrado em carta.
Por fim (ou melhor, por enquanto), Billy Elliot – menino fictício de 11 anos – me fez pensar, também em dois pontos. O primeiro deles é o de que uma educação e uma sociedade inclusiva melhora a qualidade de vida de todos. Voltando pra história, que desperdício seria do mundo se ele não fosse estudar e se profissionalizar na arte e na dança. Que perda para o ballet, para escola onde estudou e para sua família que pode vê-lo dançar em um grande espetáculo. Afinal, quantas crianças e jovens não estão, hoje, ainda na coxia ou na platéia enquanto deveriam ocupar o palco, sendo protagonistas de seus próprios roteiros?
Alocado do seu lugar por direito (aquele de ser livre), Billy poderia ter seguido os passos do pai e ser mais um minerador frustrado (novamente: não desmereço a profissão mas falamos aqui de garantir oportunidades). Saindo da ficção, zilhares de pesquisas das mais diversas áreas, incluindo psicologia do trabalho e da própria administração já comprovaram que produtividade – o nível de – tem ligação direta e proporcional com a satisfação da ocupação e do cargo exercido. Para quem gosta de lógica é bem simples: felicidade produz mais, satisfação e realização profissional gera maior valor econômico.
A segunda reflexão diz respeito à necessidade de des-construir certos “acordos não ditos” dos papéis de gênero. Comecei recentemente alguns estudos sobre a construção de masculinidades e o quão nociva algumas delas são para todos nós: homens e mulheres (cis, trans, héteros, gays, bis, ou fluídos). Mas para além dessa mudança de percepção é importante destacar ainda a importância da co-responsabilização de todos os agentes envolvidos.
Se no processo de luta pela educação a inclusiva o foco – durante muitos anos – foi o de garantir o acesso de crianças e jovens com deficiência na escola comum – hoje a luta é por garantir o direito à aprendizagem. Essa luta precisa ser de todos porque ela é de todos. Todos temos o DIREITO de viver na diferença, de conviver e trabalhar em espaços heterogêneos e diversos, aprender com o outro, ser no outro e me re-significar a partir desse outro.
Quantas crianças e jovens não estão sendo privados do direito de conviver com o diferente hoje? Com quantos Billys você estudou na sua vida? Com quantas mães cegas você já conversou? Quantos usuários de cadeira de rodas trabalham no seu escritório?
Nesse misto de expectativa e decepção, de conquistas e retrocessos que seguimos com a dança e com nosso sapateado, na esperança de que um dia (um dia não!). De que EM BREVE, usar tutu, vestido e salto não fique restrito nos palcos de um teatro na Zona Sul de São Paulo, mas que esse palco seja a própria rua. E que nessa rua tenham rodas, muletas, pernas, braços… e as mais diversas formas de ser(res) humano(s) e como tais, com a garantia de seus direitos.