Era uma vez…
Faz uns 3 anos agora desde que li a minha primeira Graphic MSP. Na época, “Astronauta – Magnetar” foi a forte indicação de um amigo querido. Embora não tenha acompanhado os lançamentos na cronologia dos seus lançamentos acabei me deparando com “Jeremias – Pele” no fim de 2018 e não poderia ter presente melhor.
Jeremias nos ensina. E quando digo nós, digo TODOS NÓS, inclusive e, talvez, principalmente ao próprio Maurício de Souza (MS) que faz o “mea-culpa” já no prefácio da publicação. Explico: embora criado na década de 60 (antes mesmo da Mônica e sua turma) só então, em 2018, é que ganhou uma história onde fosse protagonista.
Não obstante, isso é apenas um reflexo de como nos constituímos enquanto sociedade, machista, homofóbica e, evidentemente, racista que somos. Ampliando a discussão podemos colocar na mesa também as questões de (não) representatividade nos estúdios Marvel que só depois de 10 anos nos cinemas concede uma história, protagonizada e feita, por negros. O sucesso de Pantera Negra foi tamanho que rompeu barreiras inclusive em um dos espaços mais conservadores e preconceituosos do cinema: a Academia do Oscar.
Representatividade importa
Deste gancho do protagonismo falemos de representatividade. Quantos jovens, crianças (e agora, muitos adultos a partir das Graphics MSP), leem, conhecem, acompanham e/ou cresceram, lendo Turma da

Mônica?? Pense agora na representatividade dos personagens principais (e portanto, mais lidos/vistos). Num país de maioria negra onde o genocídio de jovens negros lidera os rankings mundiais, é de chamar atenção que um patrimônio editorial como a Turma da Mônica não tenha explorando um tema tão presente e marcante em nossa história quanto é o racismo.
Longe de um discurso pesado e desolador, Jeremias conduz a discussão do racismo de forma delicada e a partir de dois pontos-de-vista: o primeiro, vem de um menino negro, ainda descobrindo como certas coisas funcionam e como o preconceito de raça se manifesta no cotidiano. O segundo vem a partir dos pais de Jeremias (ambos adultos e negros). Reside aqui um dos principais pontos enquanto obra de HQ que ensina.
“Pele” conversa com crianças, jovens e adultos e falar com tanta gente sobre o racismo, para além de necessário, é um verdadeiro compromisso com a formação cidadã dos fãs de quadrinhos e de todos os leitores brasileiros. A questão geracional também marca um ponto importante na trama que é justamente a responsabilidade (quase cruel) de pais que têm filhas e filhos negros de criar seus filhos para uma sociedade ainda preconceituosa. Os diálogos entre pais e filho ora são de cortar o coração ora são encantadores, mas em todos eles, os balõezinhos fala também diretamente com o leitor.
O papel de educadores e da educação
Rompendo o espaço familiar, Jeremias sofre preconceito também em sua escola. Nesse ponto é importante destacar o brilhante roteiro de Rafael Calça. Orientados a fazer um trabalho escolar, cada estudante deveria pesquisar sobre uma profissão determinada pela professora. Animado com o projeto Jeremias levanta a mão e sem esconder a animação diz que gostaria muito de pesquisar sobre a profissão de Astronauta (sim, é um easter egg!). A reação da professora (nesse caso me recuso usar o termo “educadora”), além de rir e fazer chacota (acompanhada pelos demais estudantes da sala), delega a profissão de pedreiro como objetivo da pesquisa de Jeremias.

Nessa cena, além do racismo, a HQ levanta questões sobre o sexismo quando uma garota manifesta que gostaria de pesquisar sobre engenharia e não arquitetura como foi instruída. Todos nós, adolescentes ou adultos de hoje sabemos o quanto questões como essas marcam nossas vidas e nossa subjetividade enquanto formação (nossos terapeutas têm muito o que agradecer aos nossos pais, não acham?). Sendo a escola um espaço oportuno e propício justamente para o desenvolvimento de cidadãos que saibam lidar com a diversidade humana a HQ retrata uma cena que – sabemos – não é nem um pouco ficcional.
Digerindo todas essas questões acompanhamos Jeremias se descobrindo enquanto jovem negro. Boa parte desse processo é dolorido e carregado de sofrimento e dúvidas que jamais terão respostas sensatas. Por outro lado é também incrível aprender, pelos balãozinhos e expressões tão bem trabalhadas por Jefferson Costa. Carol e Alexandre (mãe e pai de Jeremias) conduzem com muita sensibilidade todas as agressões sofridas pelo filho. Importante destacar que embora protejam eles, em momento algum, escondem que isso irá acompanhá-lo por muitos anos ao longo da vida e que esse tipo de preconceito se manifesta de diferentes formas e em espaços que nem imaginamos acontecer.
Nesse sentido, se for para destacar personagens realmente educadores, seriam os pais de Jeremias. Mostrando não apenas a importância da família na educação dos filhos mas principalmente o quanto uma família funcional pode reverter problemas em verdadeiras lições valiosas na formação dos jovens. É dessa forma tocante e inspiradora que Jeremias – e nós, aprendemos a levantar com cada vez mais firmeza a cada tombo que levamos.
Por mais Jeremias
Pele nos ensina que não há espaço para a diversidade e inclusão onde há desinformação. Jeremias nos mostra que não há motivo de esconder quem somos mesmo que tudo no mundo (incluindo eventualmente nossos professores!) pareça dizer o contrário. A partir das releituras e re-invenções da coleção Graphics MSP temos a chance de criar referências que ilustrem a riqueza cultural e diversa que temos no país. Certamente isso irá contribuir cada vez mais crianças e jovens se vejam em todas essas produções e se sintam parte de algo, exatamente como são.
Para encerrar invoco as palavras de Emicida que na contra-capa da HQ faz uma reflexão sobre a necessidade de sermos escudos ao invés de bandeides na vida das pessoas. O que penso é que nesse caso, Jeremias é as duas coisas. Para muitos será um curativo que protege, a partir de agora, uma ferida a muito tempo exposta, para muitos outros, certamente será um forte escudo. Talvez não indestrutível mas que carrega consigo um potencial inimaginável de oferecer refúgio e força para percorrer um caminho já muito calejado em nossa história.
Que novos Jeremias façam novos caminhos, e que tenham a liberdade para serem livres e se inventarem quando quiserem, inclusive todo dia.