A nova (e polêmica) estreia da Netflix para 2018 não poderia ser mais inusitada. Anunciada ainda em 2017, DEVILMAN Crybaby é um anime (sim!) feito por encomenda da Netflix — o que finalmente torna um anime “Original Netflix” realmente um original da Netflix –, baseado em um mangá lançado na década de 1970; mangá esse derivado de um anime homônimo: Devilman, todos roteirizados pelo mangaka Go Nagai.
O enredo de DEVILMAN Crybaby é, em geral, bastante simples: um garoto sensível, empático e bastante molenga, morador da periferia de uma cidade que parece ser Tóquio (isso é um detalhe importante), um belo dia vai tentar ajudar a garota que ele gosta a fugir de uns caras bem inconvenientes, e acaba dando de cara com um amigo de infância, que diz que precisa dele para realizar uma missão relacionada aos seus estudos de Antropologia e Demonologia. Isso acaba fazendo com que o garoto sensível — Akira Fudo — acabe em uma festa regada a drogas, álcool e sexo, onde seu amigo de infância — Ryo Asuka — diz que demônios são invocados. Spoiler necessário a fins de compreensão, Ryo consegue fazer com que Akira seja possuído por um demônio e, contra todas as expectativas, Akira domina o demônio (a título de curiosidade, o demônio é Amon), se tornando uma criatura com corpo demoníaco e alma de humano — um Devilman.
Basicamente o enredo de qualquer mangá shonen que se preze, por que DEVILMAN Crybaby está causando tanto frisson nas redes sociais atualmente?
DEVILMAN Crybaby não é um anime fácil de assistir, nem nos seus primeiros episódios. A série, baseada em um mangá igualmente violento e explícito, tem cenas de violência gratuita com muito sangue e nudez em cada canto, o que já torna a série desconfortável para uma parte considerável do público em geral. Além disso, o fato de ser um anime — estilo filmográfico sempre associado à infância por N razões — causa uma quebra de expectativas muito grande no espectador, que decerto esperava mais algum anime onde amizade e lutas eternas são as coisas mais valiosas do universo.
(Abro esse parênteses para dizer que eu inclusive amo animes onde amizade e lutas eternas são as coisas mais valiosas do universo)
Além disso, as reflexões, alegorias e metáforas propostas por DEVILMAN Crybaby são desoladoras, sufocantes e… Tristes. Um grande ensaio sobre a natureza humana, DEVILMAN Crybaby é muito mais sobre o que somos enquanto Humanidade do que sobre demônios e seres sobrenaturais. É sobre esperança e desespero, paranoia e confiança; e as conclusões a que chega não são nada alentadoras. Entretanto, a série é, também, sobre amor. Sobre todas as possibilidades que o amor pode trazer, e sobre como, mesmo contra todas as possibilidades, devemos nos manter fortes e sempre dar o melhor de nós para as pessoas — ainda que elas não queiram.
O desenvolvimento — e presença — dos personagens é bastante acertado, também. Não existe personagem tapa-buraco: todos durante a narrativa têm sua importância, sua função, e seu momento de brilhar. As relações construídas são todas exploradas e, ainda que não seja de maneira profunda — são 10 episódios, afinal –, todos os personagens tem algum desenvolvimento na história, e todos terminam amadurecidos com o desenvolver da trama.
Outro ponto que acho interessante destacar é que (ainda que de maneira bastante superficial), a série mostra essa nova “classe C” japonesa, filhos de pais desempregados e mães solteiras, num país que vê o número de pobres aumentar significativamente desde o começo dos anos 2010[1] [2] [3]. Com um grupo de personagens rappers e ambientado, em sua maior parte, em uma escola pública do subúrbio, é comum ver cenas de píers abandonados, galpões fantasma e músicas de protesto, falando exatamente sobre a falta de perspectiva atual no Japão. Há também, e também de leve, a problemática da exploração sexual de menores altamente normalizada e institucionalizada, e de como em alguns casos isso se vincula à situação de pobreza na região. (Entretanto, não esperem discussões profundas sobre os assuntos, visto que eles não são o foco da série).
A animação é horrorosa, tristemente feita nas coxas, como parece ser o padrão da indústria atualmente. Cenários mal desenhados, personagens completamente fora de perspectiva; enfim, todas aquelas coisas que parecem comuns em animes hoje em dia (e sim, eu sei que isso tem a ver com a precarização do mercado por conta de falta de grana, mas esse não é o foco da resenha).
Em contrapartida, a trilha sonora da série é maravilhosa. Com muita música eletrônica e versos de rap cantados pelos personagens, a ambientação sonora de DEVILMAN Crybaby compensa, ao menos um pouco, a animação relaxada e caricaturesca.
Com tudo isso dito, vale a pena assistir DEVILMAN Crybaby?
Vamos lá: a série é boa. A história, apesar dos curtos 10 episódios, se desenvolve bem, e tem uns momentos ótimos, além de ser ótima no geral. Entretanto, como dito no início do texto, a série é pesada em diversos aspectos, seja na representação gráfica de violência, na quantidade de cenas de nudez, ou na temática em si; é também triste e pesada no desenvolvimento dos acontecimentos e nas soluções que toma na narrativa, desenvolvimento esse que pode, sim, trazer muito sofrimento psicológico a quem está assistindo. Totalmente não recomendado para menores de 18 anos.
Então, fica a recomendação: a série é boa, e vale a pena ser assistida, desde que você esteja com estômago para aguentar ver, em dez episódios, o pior da Humanidade condensado; cenas de violência gráfica bastante explícitas; sexo e nudez aos montes; e falta de esperança generalizada.
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[1] http://www.asiacomentada.com.br/2016/04/discusso-sobre-a-pobreza-no-japo/
[2] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141111_pobreza_japao_et_pai
[3] https://www.google.com.br/search?q=aumento+pobreza+jap%C3%A3o&ie=utf-8&oe=utf-8&client=firefox-b-ab&gws_rd=cr&dcr=0&ei=-updWuJ8w6PCBOfWraAE