Não é de hoje que a Netflix tem dado grande atenção a produções que visem discutir questões relacionadas à saúde mental. Bem recentemente, a empresa de streaming de séries e filmes se viu no centro das polêmicas sobre suicídio ao lançar em sua plataforma, a série 13 Reasons Why, baseada no livro homônimo. Essa tem sido uma jogada interessante em tempos em que certas discussões – antes vistas com certo tabu – tem ganhado cada vez mais a atenção da sociedade. E é nesse espírito – creio eu – que a produtora lançou há poucos dias a série Atypical para falar e explorar um pouco do universo das pessoas com autismo.
A série, protagonizada por Keir Gilchrist, traz ao espectador, Sam, um garoto neuroatípico com diagnóstico de autismo e que passa a ter interesse em conquistar uma namorada. É a partir disso que o seriado desenvolve sua narrativa, apresentando os conflitos familiares, pessoais e sociais que isso traz à tona. Afinal, para o senso comum, uma pessoa neuroatípica seria incapaz de desenvolver um relacionamento afetivo funcional com alguém. Doce engano.
Atypical é uma série que soube trabalhar muito bem certos tabus em torno das pessoas com alguma diferença neuropsicossocial, em especial aquelas que se enquadram no espectro autista. Keir Gilchirst – já conhecido por protagonizar outro filme sobre saúde mental chamado “Se enlouquecer, não se apaixone” – soube representar muito bem seu papel, surpreendendo em muitas cenas, com destaque para a da crise no ônibus. Para além do próprio Sam, personagem do Gilchrist, foi interessante ver o contexto familiar que envolve pessoas neuroatípicas, principalmente em relação aos cuidados dedicados, aos medos de como elas podem se adaptar num mundo geralmente, tão inacessível aos diferentes, etc.
Ainda que seja uma série bem leve, ela explora de forma razoavelmente eficiente questões que são mantidas e tratadas por baixo dos panos. A maioria de nós já ouviu falar sobre autismo, mas nunca tivemos a oportunidade real de lidar com isso. Atypical rompe com esse distanciamento ao trazer para o grande público a realidade (ainda que não totalmente fiel) do dia-a-dia das pessoas com autismo.
Mas, nem tudo são flores. Se a série acerta por trazer ao público a discussão sobre autismo e sobre como a sociedade se coloca diante disso, ela peca por apresentar uma história otimista demais e que, por isso mesmo, foge muito da realidade do universo autista. Sam é definido como um indivíduo neuroatípico altamente funcional e sim, isso é um espectro possível dentro do contexto tratado, mas não é o único nem, tampouco, o mais comum. Ao longo da série, Sam tem um desenvolvimento social e interpessoal que é, sem exagero, fenomenal. Em alguns momentos, mal dá para dizer que Sam tem alguma coisa que o diferencie das demais pessoas.
Já tive bastante oportunidade de conviver com pessoas que vivem dentro desse contexto para saber que o que a série retrata é uma realidade um tanto isolada. Em grande parte das vezes, muitas pessoas com autismo tem pouquíssimas habilidades sociais, algumas nem são capazes de verbalizar o que sentem e pensam, enquanto outras, ainda, possuem problemas associados como convulsões frequentes, o que as fazem necessitar de remédios que, infelizmente, não são fáceis de serem obtidos. E esse foi o ponto que me deixou triste quando vi que foi completamente ignorado pela série.
Atypical soube falar dos grupos de apoio dos pais, sobre como o “politicamente correto” pode atrapalhar a aproximação da sociedade em geral com esse assunto, sobre como, dentro do ambiente familiar, muitas vezes o cuidado dedicado a crianças com algum distúrbio de comportamento pode culminar no esquecimento de outros familiares sem as mesmas necessidades, etc. E isso foi bem bacana, realmente, mas não é terça parte do problema real.
Fazendo uma comparação bem simplista, se 13 Reasons Why pecou por explorar muito a fundo os problemas do suicídio, bullying e abusos sexuais, Atypical fez o oposto e pecou por abordar muito superficialmente e até de forma demasiadamente otimista a realidade das pessoas com autismo. A série é boa, agradável de assistir, mas assistam “Autismo – O Musical” e vejam a diferença entre as duas obras.
No mais, fico muito feliz, apesar de tudo, por ver uma grande empresa como a Netflix tratando de assuntos que, em geral, são mantidos atrás das cortinas. No caso de Atypical, a série teve algo que me chamou muito a atenção (positivamente) que foi sua fotografia e sua paleta de cores sempre focada no azul, que é a cor simbólica dos movimentos a favor dos direitos das pessoas com autismo. O próprio Sam tem uma preferência pessoal por roupas em tons de azul, o consultório de sua terapeuta tem paredes azuis, os ônibus que ele frequentemente usa são azuis, etc. Isso foi uma sacada muito inteligente, pois cria um ambiente bem aprazível para o debate proposto. A atuação de todos os atores, para mim, foi muito bem trabalhada, mesmo naqueles com menos destaque. A forma como retrataram o modo de pensar de Sam foi tão boa como a forma que representaram os sentidos do Demolidor em sua série. Então, pelo conjunto da obra, Atypical é uma série ótima, bem produzida, bonita e agradável de assistir. Tem seus pontos falhos, obviamente, mas isso não a torna ruim, pelo contrário, uma segunda temporada seria uma ótima oportunidade de melhorar isso.
Até a próxima!
Revisado por Adrien.