Eu sempre pensei que filmes deveriam existir para além do simples entretenimento; eles devem, também, funcionar como meios de reflexão, de nos fazer (re)pensar certos conceitos que carregamos durante nossa vida, de nos permitir rever alguns valores e, quem sabe, mudar o mundo. Partindo dessa ideia, sempre gostei de filmes que me fizessem terminar de assisti-los com certo peso na consciência, mesmo que esse peso fosse de culpa ou ressentimento. Sou catártico, gosto de sentir na pele a dor do personagem mesmo que, na verdade, eu saiba que nada daquilo é real.
“Precisamos Falar Sobre o Kevin” é um desses filmes.
Eva: você nunca desejou um amigo com quem pudesse brincar?
Kevin: não.
Eva: você pode gostar.
Kevin: e se eu não gostar?
Eva: você vai ter que se acostumar.
Kevin: só porque você se acostuma com algo, não significa que você goste. Você se acostumou comigo.
Lançado em 2011, o filme conta com a participação de Tilda Swinton (As Crônicas de Nárnia, Constantine) e Ezra Miller (As Vantagens de Ser Invisível, Every Day) e foi dirigido por Lynne Ramsay. A história gira em torno da vida de Eva (Tilda Swinton), uma mulher solitária e depressiva que vive seus dias como se, no fundo, não quisesse vivê-los. Mas não se engane, este não é um filme sobre depressão, é mais, muito mais do que isso. É um filme que fala sobre moral, sobre valores sociais, sobre o bem e mal. Basicamente, é um filme que fala sobre nós! Sim, sobre nós, porque é assim que você se sente ao longo da história, quando, aos poucos se aprofunda mais e mais no drama pessoal (e coletivo) que norteia a vida de Eva.
Eva já foi uma mulher feliz e bem sucedida. Ela era casada com Franklin (John C. Reilly), com quem teve dois filhos: Kevin (Jasper Newell/Ezra Miller) e Lucy (Ursula Parker). Ela tinha uma boa casa, uma boa vida, um bom trabalho, tudo tinha tudo para dar certo. Mas não deu. Por que não deu certo, por sua vez, acaba surgindo como a pergunta que guia o telespectador durante todo o tempo de duração do filme que se marca, entre tantos aspectos interessantes, por explorar ao máximo tons e texturas avermelhados quase como se o próprio filme estivesse a sangrar enquanto roda na tela.
E talvez, no fundo, o filme seja uma metáfora para uma hemorragia de moralismos usados à exaustão pela sociedade.
Kevin, o personagem que encabeça o título do filme, é aquele que carrega sobre si todo o peso do antagonismo humano porque, na verdade, ele acaba por surgir como o mal em pessoa, como a encarnação de todo o lado sombrio do ser humano que é usualmente suprimido por todas as leis e regras impostas pela sociedade e que moldam todas as nossas relações.
Todo o foco do filme está sobre a relação entre Eva e seu filho, Kevin. Ao mesmo tempo, essa relação não é o ponto principal da história. Toda a história caminha entre dicotomias que vão entre a questão do bem e do mal, entre o indivíduo e a sociedade, interesses pessoais e interesses coletivos. A história brinca com aquilo que chamamos de ordem porque, se pararmos para pensar, não existe ordem na ordem, ela é apenas um meio de organizar as coisas de modo que tudo se torne parte de um sistema que tem como objetivo, nada mais do que manter as coisas dentro de um padrão. Quem foge desse padrão ou é arrastado por ele ou eliminado, porque o sistema simplesmente não tolera nada que fuja de suas regras.
Dá até para dizer que todas as dicotomias que surgem no filme são incorporadas na relação Eva X Kevin. Ela, de um lado, luta para ser a mãe perfeita, a esposa ideal, a profissional bem sucedida e boa dona de casa. Kevin, por sua vez, surge para romper com todos os estereótipos, sendo o filho maquiavélico, cínico e manipulador. Os dois vivem em constante conflito, coisa que começa logo no nascimento do menino. Ele, sendo uma criança bastante raivosa, cresce com um comportamento bastante temperamental e até perigoso. Eva, por sua vez, tenta de todos os modos entender o comportamento de seu filho que parece odiá-la desde pequeno. Aos poucos, Kevin vai crescendo, se tornando um garoto de personalidade questionável, mas extremamente hábil na manipulação. Sua mãe, no entanto, caminha toda a história presa à cadeia da solidão, sendo esquecida e até ignorada aos poucos, carregando sobre si todo o peso do drama que termina da pior maneira possível.
Uma das questões mais interessantes do filme diz respeito sobre a natureza do mal. Kevin não foi uma daquelas crianças que cresceram em meio a uma família torta, sofrendo abusos na infância, ou mesmo sendo vítima de bullying. Pelo contrário, ele tinha tudo para ser uma criança e um garoto feliz. Mas, ele simplesmente não foi, optou por seguir a própria vontade, se desprender de qualquer amarra ética e moral, culminando nas cenas que encabeçam os últimos minutos do filme. Enquanto isso, Eva é a personificação de todos aqueles que vivem de acordo com as normas sociais, mas que são, ao mesmo tempo, estigmatizados por não cumpri-las integralmente. O sistema não existe para aqueles que não são capazes de satisfazê-lo; quando alguém assim surge, a sociedade rapidamente trata de mantê-lo à distância, colocando-o à margem do mundo.
Há quem considere o filme parado, e talvez seja. No meu ponto de vista, ele seguiu o ritmo que a história pede. É intenso ao mesmo tempo em que você sente que as coisas estão presas no tempo. O trabalho com as cores, principalmente tons vermelhos, dá todo um ar dramático a história que é marcada justamente pelo vermelho sangue que brota de seus personagens. A cena de abertura é simplesmente formidável e psicodélica, explorando toda a dualidade sobre a personagem de Tilda Swinton. Vale ainda um breve comentário sobre a atuação dos atores, especialmente o trio que forma o núcleo principal: Tilda Swinton conseguiu incorporar e transmitir toda a dor que uma mãe pode sentir ao viver o que Eva viveu. Jasper Newell e Ezra Miller foram simplesmente fantásticos, dando corpo e voz ao Kevin quando criança (Jasper) e adolescente (Ezra). Há quem diga que o Kevin daria um ótimo Damien, do filme A Profecia, mas, infelizmente, essa é uma história sobre o ser humano e não há nada de fantástico aqui, só o homem, nu e cru.
Título brasileiro: Precisamos Falar Sobre o Kevin
Título original: We Need to Talk About Kevin
Diretor: Lynne Ramsay
Ano de lançamento: 2011
Atores: Tilda Swinton, Jasper Newell, Ezra Miller, John C. Reilly, Ursula Parker
Distribuidor: Paris Filmes
Baseado no best-seller de Lionel Shriver.